Rosa Branca: Um conto original de Sérgio Filipe Godinho

Sinto-me como se vivesse no futuro. Penso em quantas almas, agora perdidas, dariam tudo o que podiam prometer para poder viver este dia. E no entanto, aqui estou eu… Assim… Desta maneira desconcertada. O meu coração a rebentar, a lágrima que não consigo controlar e avassalado por um… nem sei. Talvez seja essa a expressão certa – nem sei. Mas de que outra forma poderia estar depois de ver uma rosa branca? Ahh, as rosas brancas…

Podemos dizer que sempre que eu me deparo com elas a minha reação é… atípica. Sim, eu sei. Se não o soubesse, de tanta vez já me olharam de lado, já o tinha compreendido. Uns por incompreensão, outros por falta de empatia, mas todos devido à maior fraqueza do ser: a ignorância.

Destacando o óbvio: Nem sempre fui assim… foi a vida que me transformou. Talvez nem tenha sido a vida, mas algo que aconteceu no entretanto. O melhor mesmo é começar pelo início.

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Era um jovem, no vigor dos meus dezoito anos, quando o meu tudo se transformou em nada e o que era nada se transformou em tudo.

Alguma vez sentiram que, até aquele momento, algo que era apenas uma palavra se transformou em algo mais? Algo real. Algo visível. Algo sentido. Para mim, de todas as palavras que me podiam ter caído em sorte, foi guerra.

O detalhe histórico não considero relevante: apenas dois lados que não se compreendem mutuamente e que optam por tudo menos pelo respeito. E o que pode acontecer quando tal conceito desaba? Destruição. Muito mais que das ruas, dos edifícios ou de qualquer outra coisa, a destruição das pessoas. Daquelas que passam a viver por metade por algo em que não tinham culpa alguma.

Contudo, eu ainda fui um dos sortudos. As minhas competências profissionais fizeram com que eu fosse destacado para um trabalho mais resguardado das balas perdidas, lançadas por homens em desespero. Um trabalho de escritório, próximo das tropas, longe do sangue. Ou assim seria…

Ainda me lembro do meu primeiro dia de trabalho como primeiro ajudante do meu muito estimado Coronel Sylva. Ao entrar na sala, onde eu o esperava, cumprimentou-me com um sorriso e um aperto de mão forte. No entanto, aquele sorriso fechado não mentia: ele escondia algo. Mas todos escondemos algo, certo? Certo. Mas ali era diferente e apostaria tudo o que tinha nisso!

Não houve grande tempo para apresentações… disse o meu último nome, a minha missão e segui para o trabalho. Poderia dizer que ele era um homem de poucas palavras, mas estaria a mentir. Acho que ele falaria muito, apenas não ali, naquela situação, com aquele cargo. Contudo, existia uma frase que não se cansava de repetir.

Temos que acabar com a guerra antes que a guerra acabe connosco – repetia a todos os elementos do grupo. Era um hino para ele e uma esperança para nós. Em especial para mim, que não entendia aquela frase como os restantes. Ninguém poderia dizer ao certo que eu seria um potencial desertor ou coisa do género, mas todos desconfiavam, cheios de certezas, que era o mais putrefeito com todo aquele descalabro desumano.

Temos que acabar a guerra, concordava, mas não desta maneira, pensava.

A proximidade do Coronel que o meu cargo exigia era tudo o que eu queria e tive sem pedir. Tínhamos uma conexão. Sentia-o como um irmão, um querido irmão… O homem era interessante, ponto. E eu queria descortiná-lo!, ponto final parágrafo.

O que levaria uma máquina assassina a sorrir? Porque haveria alguém, em pleno cenário de guerra, parecer estar a viver o seu mundo encantado? Seria apenas sádico ou estaria algo a acontecer atrás das fardas?

Ao contrário do esperado, foi a verdade que me descobriu. Como? Naquilo que parecia ser apenas uma de muitas outras reuniões privadas.

Vejo que estás descontente com a guerra. – disse-me.

Todos estamos… – respondi.

Vejo que estás bastante incomodado… Se me percebes.

Creio que terá que ser mais claro.

Bem… Tu achas que eu concordo com tudo isto?

Diria que sim.

Dirias mal. – soltou – Como sabes a guerra está à beira de ser ganha, mas nunca há um fim pacifico. Pensas que o outro lado se limitará a desistir? Nunca… Mas há pior. – disse, causando o descontrolo de transpiração – Soube de fonte próxima que eles têm planos para atacar as famílias de todos nós. A minha família está a salvo. A tua não. Este é o plano. – esclareceu, passando-me uma folha com informações – Confio em ti para manter o segredo.

Eu abanei a cabeça, concordando.

À hora exata, lá estava eu no ponto de encontro. Se estava nervoso? Imenso… Poderia até dizer que nem conseguia sentir mais nada. Nem o vento a bater na cara, nem o peso que fazia sobre o banco de jardim e muitos menos os festejos de final de guerra. A guerra tinha acabado mas, se a minha família não estivesse lá, poderia ter começado o inferno.

Olhava os festejos, numa tentativa de me distrair, quando um rapaz me entrega algo que virou o símbolo da libertação: uma rosa branca. Sorri-lhe, ele sorriu-me de volta e virou-se agarrado ao enorme bouquet, destinado a entregar esperança a tantos outros. E no preciso momento em que apreciava as particularidades de uma rosa branca algo me conquista os sentidos.

Será verdade? Será mesmo?

Virei a cabeça e o que vi fez com que uma lágrima mergulhasse no meu rosto. Saltei do banco e abracei a minha família como o todo que desesperei só por pensar não ter.

E o Coronel? – perguntei.

A resposta? A resposta fez com que uma lágrima se suicidasse no meu rosto e a minha mão abriu-se de espanto, deixando cair a rosa branca, apavorada, no chão da liberdade sem heróis.

Especialmente, sem o herói Sylva. Não foi só a minha família que ele ajudou, foram centenas até àquele dia: O dia em que ele acabou com a guerra, mesmo quando ela acabou com ele.

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