A provedora de Justiça recusa ter existido fraude nos procedimentos das indemnizações às vítimas dos incêndios de 2017, revelando que as pessoas estavam “profundamente reticentes” em requerer esse apoio, inclusive pela “desconfiança intensa em relação ao Estado”.
Numa audição na comissão eventual de inquérito parlamentar à atuação do Estado na atribuição de apoios na sequência dos incêndios de 2017 na zona do Pinhal Interior, na Assembleia da República, em Lisboa, a provedora Maria Lúcia Amaral referiu que “a desconfiança era tal” que esteve “15 dias sem receber requerimentos”.
Em resposta às dificuldades na apresentação de requerimentos de indemnização de familiares de vítimas mortais, a provedora de Justiça decidiu ir aos locais e falar com as pessoas, estabelecendo um contacto “intenso e profícuo” com as autarquias.
Questionada pelos deputados sobre as queixas recebidas relativamente a outros procedimentos de apoio, inclusive reconstrução de casas, a provedora disse desconhecer o porquê desses instrumentos terem corrido menos bem.
“Sei que as coisas correram bem neste que eu conduzi, pelo facto de poder ter sido conduzido centralmente, de acordo com critérios que eram difíceis, mas que foram predeterminados, por ter ficado a cargo de uma instituição, a Provedoria de Justiça, que além de já ter alguma experiência neste domínio – não esqueçamos a experiência de Entre-os-Rios -, era uma única instituição que pôde conduzir de forma serena, mas com ordenação racional a todos os procedimentos”, declarou Maria Lúcia Amaral.
Na perspetiva da provedora de Justiça, a situação é diferente quando os procedimentos têm de ser conduzidos localmente, em que são repartidos por múltiplas instituições, pelo que “o risco da desagregação, da menor razoabilidade da condução dos procedimentos é maior”.
Apesar de defender a gestão centralizada nos apoios, a responsável manifestou-se a favor de serem as autarquias a conduzirem a reconstrução das segundas habitações, pela proximidade com os destinatários, admitindo que “o pluralismo dos centros de decisão originou uma diversidade de decisões”.
“Deveriam ter sido mais finos, mais precisos, os critérios gerais nos quais se moveriam as decisões dos municípios”, sustentou.
Relativamente às queixas sobre programas de apoio à agricultura e empresas afetadas pelos incêndios de junho e de outubro de 2017, a Provedoria de Justiça contabilizou “mais de quatro dezenas de queixas”, em que a esmagadora maioria ficou sem apoio, devido aos procedimentos de candidaturas muito difíceis de adotar por parte dos interessados, com “prazos de candidatura curtíssimos de 10 dias” e exclusivamente feitos ‘online’.
Maria Lúcia Amaral disse que pediu ao ministro da Agricultura, Luís Capoulas Santos, que tivesse em atenção as queixas, sugerindo a dilatação do prazo de candidaturas aos apoios, mas o governante recusou, comprometendo-se a avaliar caso a caso os motivos de justo incumprimento do prazo que fossem apresentados.
“O ministro comprometeu-se, mas eu continuei a receber queixas de desatendimento destes justos impedimentos”, criticou a provedora.
Em relação às queixas na reconstrução das casas de primeira habitação, a provedora adiantou que eram distribuídas por todos os concelhos afetados pelos incêndios e estavam relacionadas sobretudo com questões de elegibilidade.
42 milhões de euros para vítimas de incêndios
A provedora de Justiça disse que as indemnizações do Estado no âmbito dos incêndios de 2017 contabilizam 31 milhões de euros para ressarcir dano por morte e cerca de 11 milhões de euros para os feridos graves.
Na audição, Maria Lúcia Amaral afirmou que os dois instrumentos de indemnização se trataram de “procedimentos extrajudiciais, de adesão voluntária”, em que foi apresentada uma proposta de requerimento que os interessados poderiam dirigir à Provedoria de Justiça.
Quanto às indemnizações aos familiares de vítimas mortais dos incêndios de junho e de outubro de 2017, procedimento que se iniciou em dezembro de 2017 e ficou concluído em junho de 2018, a provedora de Justiça revelou que foram apresentados 309 requerimentos, dos quais nove foram recusados.
“Os 300 que admiti diziam respeito a 115 vítimas mortais. No total, as propostas de indemnização que fiz foram aceites pelos destinatários e pagas pelo Estado, corresponderam a 31 milhões de euros”, avançou Maria Lúcia Amaral.
Relativamente às indemnizações aos feridos graves, em que a classificação da gravidade dos ferimentos foi da responsabilidade do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), a Provedoria de Justiça recebeu 195 requerimentos, dos quais 75 foram admitidos, em que, “no total, o Estado gastou neste procedimento 11 milhões de euros, na realidade 10 milhões e 726 mil euros”.
O procedimento destinado a ressarcir os feridos graves iniciou-se em março de 2018 e “só foi totalmente concluído há apenas um mês”, indicou a Maria Lúcia Amaral, explicando que a demora foi resultado da “particular complexidade do ressarcimento dos danos na situação dos feridos graves”.
Os deputados solicitaram a desagregação dos dados para saber o que corresponde ao incêndio de Pedrógão Grande e o que diz respeito aos incêndios de outubro de 2017, ao que a provedora de Justiça se comprometeu a fazer chegar a informação por escrito, uma vez que não a tinha organizada dessa forma.
O incêndio que deflagrou em 17 de junho de 2017 em Escalos Fundeiros, no concelho de Pedrógão Grande, e que alastrou depois a municípios vizinhos, nos distritos de Leiria, Coimbra e Castelo Branco, provocou 66 mortos e 253 feridos, sete deles com gravidade, e destruiu cerca de 500 casas, 261 das quais eram habitações permanentes, e 50 empresas.
Já as centenas de incêndios que deflagraram em 15 de outubro, o pior dia de fogos de 2017 segundo as autoridades, provocaram 49 mortos e dezenas de feridos. Esta foi a segunda situação mais grave de incêndios com mortos em Portugal, depois de Pedrógão Grande.