Mário Beja Santos: Questionar os desafios postos pelo património cultural de âmbito regional

Livro das escrituras sagradas com revestimento em prata.Colecção de objectos do quotidiano judaico, de Aires B. Henriques

Um tanto por toda a parte, data dos anos 1970 a explosão dos museus regionais ou temáticos, entendidos como espaços de exibição, conservação e restauro de atmosferas reconstituídas do passado, de artes agrícolas e industriais, da abrangente memória de um concelho como somatório das parcelas de um território e seus objetos de memória, mas também de localidades que chamaram a si o tema do vinho, dos têxteis, do calçado; mas, igualmente, o ajuntamento de núcleos temáticos, a integração e a publicitação de coleções particulares, do património religioso, do património natural, de castelos e fortificações, entre outras manifestações de caráter material e imaterial.

Importa saber o porquê deste poderoso fenómeno, cujo ímpeto ninguém consegue travar. Ele preludia a globalização, foi como se se tivesse gerado a consciencialização do risco de novos valores universais que pudessem levar à obliteração ou minimização desses valores patrimoniais regionais ou locais. Foi uma reação mundial, não houve conjugação ou programação por parte de regiões, municípios, movimentos de cidadania ou forças económicas; gota a gota começaram a proliferar fora das grandes concentrações urbanas manifestações de identidade de património material e imaterial. Há, logo, que medir os impactos destas manifestações, tentar perceber como podem ser rentáveis em termos culturais e económicos e apercebermo-nos que envolvem encargos orçamentais vultuosos, profissionais capazes e populações mobilizadas.

Serve este prelúdio para comentar questões de conteúdo de uma obra recente de Aires B. Henriques intitulada Um Museu Judaico, uma coleção e um projeto em Pedrógão Grande, Vila Histórica, edição do Museu da República e Maçonaria, 2021. Tece o autor um comentário crítico a uma enorme insensibilidade de certas autarquias quanto aos valores patrimoniais, mais os edificados que os naturais. Concretamente, refere que em 2002 propôs à edilidade de então que candidatasse Pedrógão Grande ao aliciante “Programa das Aldeias Históricas”, de vastos fundos comunitários destinados à recuperação arquitetónica e urbanística de algumas das mais belas aldeias e vilas do Interior Beirão, sem qualquer resposta, quem aproveitou o programa foram doze concelhos da Beira Interior, caso das vilas de Almeida e Belmonte e a cidade de Trancoso. E refere a propósito que havia fundamentos para a candidatura, o centro histórico de Pedrógão Grande remonta a 1135 e o seu acervo tem sido exaltado em publicações como o Guia de Portugal, dirigido por Raúl Proença, ou As mais belas aldeias e vilas de Portugal, uma publicação consagrada da Editorial Verbo. Enumera o que há de genuíno no centro histórico de Pedrógão Grande e centra as suas observações num edifício que adquiriu, bem perto da Igreja Matriz e que tem a ver com um projeto de iniciativa pessoal onde cabe o Museu Judaico, ele é possuidor de um acervo de peças que devem ser mostradas ao público. E documenta prodigamente os seus objetos judaicos que incluem fotografias, alfaias religiosas, esculturas e um conjunto apreciável de objetos da mais variável índole.

Somos, pois, remetidos para uma apreciação genérica de quem responde pela dinamização destes valores patrimoniais. Há fundos comunitários, mas os preponentes têm tudo a ganhar em gerar cooperação. Um elevado conjunto de concelhos tem património anterior à Reconquista, logo a Pré-História, depois a presença romana, mais tenuemente a árabe. Havia tudo a ganhar se os concelhos do Pinhal Interior (pelo menos) se entendessem na definição de uma rota deste Portugal anterior à Reconquista. E penso na questão da Arqueologia Industrial onde Castanheira de Pera devia estar na vanguarda, foi um poderoso centro têxtil, é deplorável ver esses sinais a ficarem em escombros.

Não se podem iludir os limites orçamentais das autarquias. Mas há potencialidades que podiam ser exploradas numa concertação intermunicipal, as candidaturas aos fundos comunitários também têm a vertente turística, há praias fluviais, mas podia haver também a rota da presença romana, Conímbriga é um expoente, mas veja-se o Rabaçal com os seus maravilhosos mosaicos. Há municípios detentores de Património da Humanidade, caso de Tomar, que não confinam a sua dinâmica cultural à presença templária ou ao Convento de Cristo. Muito recentemente, a edilidade publicou uma obra de grande importância, a Carta Arqueológica do Concelho ou as Origens de Tomar, é um trabalho impressionante que vai da Pré-História à presença romana. Isto para sublinhar o quê? Para atrairmos turistas carecemos de roteiros ou guias, precisamos de os publicitar não só através do Departamento Governamental do Turismo, mas também de publicações municipais e mediante um amplo esforço regional, mostrar o que há em vários concelhos que gozam de alguma identidade geográfica e patrimonial. E o turista pode estar interessado em usufruir da arte religiosa, querer visitar coleções particulares, percorrer ruas onde seja pronunciada a época medieval, conhecer passeios pedestres, ter atividades em albufeiras, percorrer núcleos pré-históricos.

A cultura e o turismo geram emprego a partir do momento em que de fora deste ou daquele concelho chega informação do que e como visitar, qual o património edificado e as belezas naturais ali existentes. Hoje, a Internet e as plataformas digitais são espaços de eleição para publicitar estas riquezas desconhecidas. Escreve-se sobre a rota do românico ou do manuelino, ou da presença árabe, mas também se pode dizer que há aldeias históricas, há belíssimas coleções temáticas (como aquelas que Aires Henriques propõe exibir para que outros desfrutem dela), há uma natureza excecional, pense-se na Lousã ou no Cabril.

Procurei refletir em voz alta quanto à necessidade dos municípios chamarem a si este mandato indeclinável de se entenderem para mostrar o seu passado e a sua identidade aos seus fregueses, ao país inteiro, a forasteiros de todas as proveniências: cooperando nas candidaturas, nas obras de divulgação, há uma História em comum ditada pela geografia e deve haver uma vontade insuperável de apagar os tremendos danos provocados pela interioridade.

Gostava muito que olhassem para estas imagens do livro de Aires Henriques e entendessem que são dados culturais que pertencem a todos nós.

 

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