Há vultos que as multidões admiram fascinadas pelo esplendor do talento ou pelo arrojo de uma grande energia. A obra encetada pela Rainha D. Leonor há mais de 500 anos, produzido ao longo destes séculos um trabalho que perdura até aos dias de hoje, com a força e vitalidade por todos reconhecida. É a verdadeira afirmação de que o findar da vida de quem criou tamanha obra, jamais ficará congelada na sombra do esquecimento.
Este artigo é um tributo ao mais formoso sentimento do coração humano. A eloquência da sua expansão é tão grande que, não é necessário traceja-la com um primor de estilo. Se cada página é uma glória, a reunião de todas é um monumento. Singela como a simples flore, mas do mais fino e encantador perfume, porque as memórias abençoadas que atravessam os séculos vinculam o seu nome na prática da justiça, do amor e da caridade.
A alma boa sente uma alegria suave quando pode estancar uma lágrima, ceifar um martírio, diluir uma dor. Em cada peito levanta-se por vezes um oceano de angústia, que afoga a alegria, sem que a luz da esperança nos dulcifique os prantos amaríssimos que nos queimam a alma. Amar com a expansibilidade de um grande sentimento, que não se estingue, mas que revive em cada primavera e a cada primavera, a alma é engrinaldada de flores.
É a alma que vai em busca dos que sofrem as agruras da sorte; consolar os tristes, dar pão aos famintos, afagar as crianças orfanadas, amparar a velhice, deixar cair palavras ameigadoras junto do enfermo que na solidão do seu leito espera o momento da derradeira agonia, é tornar todos os homens irmãos, dulcificando as agruras da vida, com a estima fraternal e amiga, porque, é na imensa serração do seu infortúnio que julga encontra o anjo da sua guarda e ergue para ele os braços suplicantes, pedindo-lhe um sorriso dos seus lábios, uma palavra de conforto e traça na sua imaginação um mundo com nunca sonhará. Sente rejuvenescer aos clarões de felicidade, os martírios transformados em lírios e os espinhos convertidos em beijos.
Será a civilização uma mentira enquanto existiram os grandes e os pequenos, os fartos e os famintos? Ou será simplesmente a condição humana que determina a crença? A Misericórdia; asilo das crenças que leva o auxílio à casa desprovida de todos os confortos, atos de religiosa piedade praticados com o maior recolhimento, com a mais santificada consagração, porque todos que se encontram nesse campo, sem distinção nem orgulho, mas sim, com o único pensamento de dulcificar os martírios de uma vida que caminha para o seu términos e que a fraternidade humana pode com o seu amplíssimo manto cortar todos esse acúleos da sorte. Dispensar um sorriso, uma palavra ameigadora e algum conforto que ele só pelo seu braço não consegue conquistar, com o mais intenso carinho aos que na sociedade ocupam posição humilde, é esse o espirito que move a obra desta Rainha.
Exercer a caridade é a mais suprema das virtudes. Caridade não é só a esmola que se atira para o seio do desgraçado quando nas ruas e nas praças nos dirige as suas súplicas; caridade tem como missão suprema dar conforto sem vexame, erguer os míseros sem orgulho, tratar o servo como irmão, porque todos são filhos do mesmo ramo. Esta é a missão mais nobre e mais alevantada; quando o homem chegar ao derradeiro termo desta viagem, não terá decerto consolação mais suave do que a lembrança do bem que praticou, olhando para todo o seu passado, verá as lágrimas que converteu em sorrisos e as dores que dulcificou em esperança.
A Rainha D. Leonor, fundadora das Misericórdias em Portugal nasceu a 2 de maio de 1458, vindo a falecer com sessenta e sete anos de idade a 17 de novembro de 1425. Viúva de D. João II desde 1495, ano em que este Rei morreu, não se apagou para a vida da corte, pela circunstância de ser irmã do novo monarca e de haver concorrido para a elevação deste ao trono.1*
- Manuel I sentiu o dever de a compensar com longas mercês: a 5 de janeiro de 1496 pede ao Almoxarifado de Óbidos que permita aos oficiais de D. Leonor receberem a dízima da Alfandega de Lisboa; a 23 de março confirma os antigos «assentamentos»; a 9 de janeiro de 1497 doa-lhe o Padroado das Igrejas de S. Nicolau, S. Martinho e Santa Madalena de Lisboa, de Salvador e Sano Estevão, de Santarém e de Santa Maria dos Povos; e, em 22 de dezembro do mesmo ano, concede à irmã a renda do direito da Pesca dos Atuns que se colhiam nas armações dos termos de Faro e Silves. Foi assim possível a D. Leonor aumentar as suas rendas e usufruir de uma considerável fortuna, além de manter um lugar de destaque na corte. 2*
Tratando-se então da terceira personagem da família Real, não admira que em 1498 quando o irmão, o Rei D. Manuel I esteve ausente em Castela, fosse incumbida de assegurar a regência do reino, que conservou até outubro desse ano, 3* ouvindo-a sempre o régio irmão em assuntos de gravidade.
São vários os títulos que impõem D. Leonor ao consenso da história: a valorização dos «banhos das Caldas», que consegue transformar em vila, 4*
Mas é a fundação da sua grande obra de assistência a que deu o nome de Misericórdia; e a proteção dispensada a letrados e artistas, numa forma de mecenato que honra a sua memória. A, Gil vicente ordenou a composição do “Auto da Alma”, representado no Paço da Ribeira, a 2 de abril de 1518, estando provado que muitas peças do criador nosso teatro foram representadas na presença da “Rainha Velha” ou a ela dedicada. Tal é o caso da peça “Auto de S. Martinho”, representado na Igreja das Caldas, a 6 de junho de 1504; o “Auto Fama”, provavelmente em 1515, no Paço de Santos-o-Velho; do “Auto da Barca do Purgatório”, nas matinas do Natal de 1518, no Hospital de Todos os Santos; e do “Auto da Índia”, representado em data incerta 5*
A proteção de D. Leonor estendeu-se também ao impressor Valentim Fernandes que, a expensas desta, traduziu e compôs obras de fundo clássico e religioso. Na biblioteca da Rainha existiam livros e códices preciosos, entre os quais a «Vita Christi» em espanhol, mandado imprimir pelos Reis Católicos, em 1502 nos prelos de Alcalá de Hernares. Deve-se ainda à viúva de D. João II a fundação dos conventos da Madre de Deus em Xabregas e da Anunciada, em Lisboa, e da Igreja da Nossa Senhora da Merceana da Batalha. 6*
O retrato de D. Leonor não parece de fácil traçado, pois muitas sombras ainda o desfiguram. Foi mulher devota e quis passar a viuvez em holo de piedade, merecendo por isso ao seu biógrafo Frei Jorge de São Paulo a designação de «a mais perfeyta Raynha que nasceu no Reyno de Portugal».7*
A sua figura tem encontrado biógrafos laudativos, como Sabugosa, Ricardo Jorge e João Ameal, havendo outros que a olham com menos indulgência, como Bento de Sousa e Braamcamp Freire, devido à «hostilidade e frieza com que tratou o marido» 8*
Mas o último historiador atenuou o seu juízo critico, por reconhecer a larga proteção que D. Leonor dispensou à vida cultural do Reino: «à viúva de D. João II devemos, pois, sob este aspecto, todos os que amamos as artes e as letras, profunda gratidão e indiscutível aplauso».9*
A Rainha D. Leonor ficou sendo especialmente conhecida pela sua obra em prol da assistência e da cultura. Se a esta última já se fez referência, é na área da assistência através de um profundo sentimento de amor ao próximo que esteve na origem de uma instituição a que a viúva de D. João II ligou o nome e que perdura até aos nossos dias com a vitalidade por todos reconhecida: As Misericórdias. A sua fundação prende-se às antigas confrarias que em muitas cidades e vilas, nos últimos séculos da Idade Média, haviam garantido a assistência aos pobres e enfermos. Compunham-se albergarias, para acolher os viandantes; hospitais para tratar dos enfermos, gafarias para socorrer os leprosos; e mercearias para lenitivo de velhos e entrevados. Umas vezes eram os frades mendicantes que se ocupavam desse mister caritativo, outras as próprias corporações que as tinham instituído. A maior parte desse centros de assistência, nos finais do século XV vivia horas difíceis, por falta de organização e de meios financeiros. 10*
O que levou a coroa a promover a sua fusão em grandes hospitais que servissem melhor a população das grandes calamidades. A época era propícia, dado que aumentou o número de «físicos», melhorando-se as condições hospitalares e renovou-se o espírito de caridade, em bons edifícios que D. Manuel fez construir em muitos lugares do Reino 11*
Mas foi a 15 de, agosto de 1498, quando exercia a regência do Reino, que D. Leonor ordenou a criação das Misericórdias, para o que teve a ajuda de Frei Miguel Contreiras, seu confessor. Tratava-se de uma confraria nos moldes de irmandade, em que um grupo de pessoas de boa formação Cristã, tomando por modelo o Evangelho de São Mateus e o princípio da solidariedade expresso por São Paulo – “Trabalhai e suportai os cargos uns pelos outros” – se propunha cumprir os 14 preceitos da Misericórdia Divina.
Sete de natureza espiritual: dar bons conselhos, ser benevolente para os pecadores, consolar os infelizes, perdoar a quem errou, ter paciência para as injúrias, ensinar os ignorantes e rogar a Deus pelos vivos e mortos. De natureza humana eram os restantes preceitos: curar os doentes, visitar os presos, dar de comer aos famintos e de beber aos sequiosos, vestir os nus, abrigar os pobres e viajantes e enterrar os mortos. Estes dados continham-se no «Compromisso da Misericórdia», que era a sua carta orgânica, tendo o provedor ajuda-lo na administração um certo número de oficiais, conselheiros e mordomos, sendo a confraria formada por irmãos a escolher nos vários estratos da população. 12*
A primeira Misericórdia surgiu no ano de 1498 em Lisboa, na capela de Nossa Senhora da Piedade da Terra Solta, situada na Sé Catedral, sendo transferida em 1534 para a igreja da Conceição Velha que D. Manuel mandara erguer com esse fim, edifício sumptuoso para o tempo. 13*
Mas não foram as grandes terras que receberam logo esse benefício, pois ainda no ano de 1498 ratificaram-se novos «compromissos» Valença, Montemor-o-Velho, Gois, Pereira, Vidigueira, Cabeço de Vide, Tavira, Lagos, Angra e Vila da Praia. 14*
Dir-se-ia que D. Leonor procurou Satisfazer terras distantes e de cujas carências tivera notícia, pelo que não quis privilegiar os lugares do seu património. Esse princípio manteve-se nas fundações seguintes, no ano de 1499 chegou a vez do Porto, Évora, Montemor-o-Novo e Albergaria. A primeira teve «Carta Régia» em 14 de março, instalando-se na Capela de Santiago do Claustro da Sé 15*
Houve uma progressiva fundação dessas casas de assistência, na Metrópole e nas Ilhas. Pode afirmar-se que no período do Renascimento houve uma cobertura de Misericórdias para o conjunto das terras do País, o que corresponde ao inicial de D. Manuel I: «folgaríamos muito que todas as cidade, vilas e lugares principais dos nossos Reinos se fizessem a dita confraria» 16*
Refira-se que até 1525, ano da morte da Rainha D. Leonor, surgiram 61 Misericórdias espalhadas pela quase totalidade do País, não tardou que a instituição fosse acolhida no Brasil, como meio de amparar pessoas enfermas e desvalidas, assim como militares e navegantes. Tudo permite crer que a primeira Misericórdia surgiu em 1543 na vila de Santos, datando de 2 de abril de 1551 o regimento que lhe concedeu D. João III, a rogo de Brás Cubas, fundador da povoação. Os historiadores não aceitam, por carência de fontes, que a vila de Olinda tivesse já uma Santa casa em 1540, mas dão o facto como incontroverso para Baía, onde o governador Tomé de Sousa fundou a Misericórdia em 1549, nomeando provedor Diogo Moniz Barreto, primeiro alcaide-mor da cidade. Dois anos depois, era a vez da capitania do Espirito Santo, seguindo-se a de Ilhéus, em 1564, e a do Rio de Janeiro, em 1567, por iniciativa do governador Mem de Sá, a quem se deve, graças à ajuda dos padres jesuítas, notável ação em prol da assistência pública. Já para os fins do século XVI, ergueu-se a Misericórdia de São Paulo, sendo que, a primeira notícia do seu funcionamento seja um pouco anterior a 1607. 17*
1* Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Vol. II, pp. 114-116.
2* A. Braamcamp Freire, Crítica e história, T. I, Lisboa, 1910, pp. 97- 132.
3* Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Vol. III pp. 13-14.
4* Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, Vol. III, pp. 238.
5* A. Braamcamp Freire, Vida e Obras de Gil Vicente, Trovador e Mestre da Balança, 2ª ed; Lisboa,1944.
6* Damião de Gois, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel I, parte V, Cap. XXVI, pp, 67-69.
7* História da Rainha D. Leonor e da fundação do Hospital das Caldas, com prefácio e notas de Fernando da Silva Correia, Lisboa, 1928.
8* Conde de Sabugosa, A Rainha D. Leonor (1495-1525), Lisboa, 1918. Ricardo Jorge, o Óbito de D. João II, Lisboa, 1922. João Ameal, D. Leonor, Princesa Perfeitíssima, Lisboa, 1943. Manuel bento de Sousa, O Doutor Minerva, Lisboa, 1895. Braamcamp Freire, Crítica e Histórias, vol, I Lisboa, 1910.
9* Braamcamp Freire, Gil Vicente, Trovador e Mestre da Balança, 2ª ed., Lisboa, 1944, p. 200.
10* Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, vol. II pp. 315-316.
11* Fernando da Silva Correia «Dicionário de História de Portugal, vol. III, pp.76-80»
12* Fernando da Silva Correia, Origens e Formação das Misericórdias Portuguesas, Lisboa, 1940, pp. 565-569.
13* Jorge Segurado, Estudo da Igreja Manuelina da Misericórdia de Lisboa, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1978.
14* Fernando da Silva Correia, Origens e Formação das Misericórdias Portuguesas, pp. 581-585.
15* Artur de Magalhães Basto, História da Santa Casa da Misericórdia do Porto, ts. I-II, Porto, 1934-1964.
16* Em carta de 14 de março de 1499 dirigida à Misericórdia do Porto. C.F. Artur de Magalhães Bastos, ob, cit., P. 164.
17* Veja-se o estudo de conjunto de Divaldo Gaspar de Freitas, «As Misericórdias do Brasil», in Atas do IV Congresso das Misericórdias, vol. I, Lisboa, 1959, pp. 331-392, Serafim Leite, «Serviços de Saúde da Companhia de Jesus no Brasil», in Brotérya, vol. 54, Lisboa 1952. pp. 386-403.
Luís M. Cunha
Licenciado em História