Se há quem se insurja contra o valor que vai ser gasto, outros consideram “justo e merecido”. Eduardo Souto de Moura, autor do projeto, justifica a criação de um lago com a necessidade de haver “água de reserva para futuros incêndios”.
“No lugar que ardeu é preciso encontrar água, água de reserva, para futuros incêndios. A poesia pode vir a seguir.” Eduardo Souto de Moura limita-se a esta frase quando o DN lhe pede que descreva o que será, afinal, o memorial de Pedrógão Grande, cujo concurso público foi lançado na semana passada pela IP – Infraestruturas de Portugal, com o valor global de 1,8 milhões de euros.
Nas aldeias, que em junho de 2017 foram varridas pelo fogo, as opiniões dividem-se. Mas só em surdina se comenta tratar-se de “um valor exagerado”, numa região que continua abandonada à sua sorte. Os eucaliptos voltaram a crescer. Quase quatro anos depois, a floresta é outra vez verde, qual barril de pólvora se o acaso trouxer um dia como aquele 17 de junho, uma trovoada seca, um calor infernal, um vento de morte. Nos três concelhos mais afetados pelo fogo, há muito que as corporações de bombeiros estavam habituadas a ver os montes a arder. Porque há muito que a desertificação deixara marcas, que os terrenos estavam em pousio, a mata ao abandono.
Só que nenhum fora tão grave como aquele, que encurralou 47 pessoas na Estrada Nacional 236, que liga Castanheira de Pera ao IC8. Ali morreu a maioria das vítimas, num total de 66. O resto sucumbiu em cruzamentos ou entroncamentos (todos eles hoje assinalados por coroas de flores de plástico), ou quando fugia das chamas que galopavam entre aldeias e lugares. Num deles, junto ao corte para Vilas de Pedro, um chafariz e um pequeno parque de merendas serão agora engolidos pelo lago artificial e a fonte, de onde há de jorrar água continuamente. A mesma que faltou em tantos pontos dos concelhos de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pera, entre o início da tarde e o princípio da noite de 17 de junho de 2017.
Quando o memorial começou a ser pensado ainda cheirava a fumo por entre os sobreviventes. Dina Duarte, que hoje preside a da AVIPG – Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande, secundava então Nádia Piazza na direção. Não tem a certeza, mas crê que seria novembro ou dezembro quando se falou pela primeira vez do assunto. O desafio ao arquiteto Souto de Moura aconteceu de forma natural: uma das vítimas do fogo na EN 236 era funcionária do seu gabinete. Regressava com a família de um dia na praia das Rocas, em Castanheira de Pera, quando foi apanhada pelo fogo.
“Ele aceitou fazer o projeto pro bono”, recorda Dina ao DN, que entretanto se afastaria da direção e só voltaria há cerca de um ano, quando houve eleições. E nessa altura o projeto já fora aprovado pelos familiares das vítimas, em assembleia geral. A presidente da AVIPG sublinha que nunca a associação foi confrontada com valores, mas recusa pronunciar-se sobre o montante – que aos olhos de muitos é avultado.
“Eu, pessoalmente, não perdi nenhum familiar direto no fogo. Mas alguns membros desta associação perderam os pais, filhos, irmãos, companheiros. É a vontade deles que está aqui em causa. Pedem com isto que se respeite a memória dos que partiram, e também dos que sobreviveram, alguns com imensas mazelas. Estamos a falar de cerca de 500 pessoas, entre mortos e feridos. Ainda no outro dia uma moça me dizia “os meus pais merecem””, afirma ao DN a presidente da direção.
No dia em que foi conhecida a abertura do concurso público para a construção, Nádia Piazza partilhou no seu Facebook que “o memorial das vítimas dos incêndios de 2017, tardio, porque complexo, será”, considerando-o “por oposição à ausência de memória. Será porque é dever a lembrança, num país de memória curta e seletiva”.
Um lago, uma fonte e um mural
A história recente encontra em Portugal um outro memorial – o que assinala a queda da ponte de Entre-os-Rios, a 4 de março de 2001, onde morreram 59 pessoas, engolidas pelas águas do Douro. Nesse caso, o memorial (da autoria do arquiteto Henrique Coelho) é uma escultura com 20 metros de altura, constituído por um pedestal de betão, pintado de branco e um anjo em bronze, com doze metros de altura. Custou cerca de 800 mil euros e foi inaugurado em 2003 pela então ministra das Finanças, Manuela Ferreira Leite.
No caso de Pedrógão Grande, a obra tem um prazo de execução de 300 dias, pelo que deverá estar pronta no segundo semestre de 2022. Além do lago, o projeto prevê também um mural onde deverão figurar todos os nomes dos que perderam a vida no incêndio. A empreitada prevê “a construção do memorial, os acessos rodoviários, e inclui uma zona de inversão de marcha para circulação proveniente de sul e renovação da paisagem marginal da EN 236-1”, afirmou fonte oficial da IP, em resposta à agência Lusa, no dia em que o anúncio do concurso foi publicado em Diário da República, a 10 de fevereiro.
Ao longo de cerca de dois quilómetros daquela estrada nacional, onde morreu a maioria das vítimas do fogo, vão ser “plantadas um conjunto de diferentes espécies arbóreas autóctones”, acrescenta a IP. Para os que ficaram, como Dina Duarte e todos os que a associação representa, é a oportunidade de “ver nascer flores onde morreram pessoas”.
O contraditório publicado pelo “Semanário Expresso” na sua edição de 26 de maio de 2018:
Souto de Moura faz memorial
Arquiteto de Braga assinará monumento em honra das vítimas mortais. E não vai cobrar honorários.
O monumento em honra dos 66 mortos nos incêndios de Pedrógão Grande terá a assinatura de Eduardo Souto de Moura. Prémio Pessoa e agraciado com um Pritzker, o arquiteto é autor de obras emblemáticas como o Estádio Municipal de Braga ou a Casa das Histórias, em Cascais, que alberga as obras da pintora Paula Rego e de Victor Willing. “Contactaram-me há poucos dias a convidar-me e disse que sim, que tenho todo o gosto em fazer isto. Mas ainda é tudo muito recente, não há esboços nem ideias, não está nada formalizado, ainda tenho de ir lá”, confirma o arquiteto.
“Apresentámos a ideia e pedimos a ajuda dele nesta empreitada num momento de viragem das nossas vidas, o momento em que se materializará a memória coletiva das vítimas dos incêndios de 2017”, explica a presidente da Associação das Vítimas dos Incêndios de Pedrógão Grande. Nádia Piazza diz ainda que o arquiteto “é uma referência nacional e internacional, com capacidade de imortalizar o que foi mortal e falível, a memória de tantas vidas caídas, materializando o amor, a família e a ascensão”.
Souto de Moura vai trabalhar de forma totalmente gratuita no projeto: “Disse-lhes para não se preocuparem com os custos, porque essa questão não se põe, não cobrarei honorários.” O gabinete do primeiro-ministro recebeu uma carta da AVIPG pedindo apoio financeiro e, ao Expresso, fonte oficial do Governo é taxativa: “Obviamente que apoiaremos a obra.” O projeto deverá resultar da conjugação de esforços da associação, do Executivo e dos municípios atingidos — Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pera.
A maior parte das vítimas morreu a fugir do fogo na EN 236-1 e, para as famílias dos mortos, a estrada é uma localização incontornável. De tal forma o impacto da “estrada da morte” é forte na população que a associação das vítimas pede que, além do memorial, seja feita a requalificação paisagística da via, substituindo eucaliptos e pinheiros por flores e gramíneas.
FONTE DA VIDA
Antes do memorial na estrada, a aldeia de Nodeirinho, onde morreram 11 pessoas, também teve um monumento, desta vez, em honra às pessoas que se salvaram, refugiadas numa fonte.
João Viola, pintor local e proprietário do terreno onde se ergue o monumento, pediu ajuda aos vizinhos e uniu esforços para tornar a ideia realidade. Tudo foi feito por voluntários e com donativos.
É formado por um pedestal de cimento e escombros de uma casa destruída, vidros e metal derretidos pelo calor e uma pedra de xisto com uma asa de ferro, e foi inaugurado no dia 17 de junho de 2018, na presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.