Rafael Almeida: “Às vezes não é fácil continuar a fazer cinema”
Numa destas tardes em que o calor do verão teimava em acentuar-se, um jovem realizador estava a trabalhar na construção dos cenários da curta-metragem de comédia que ia gravar. Mas fez uma pausa. Uma pausa para poder conversar sobre o que já fez, o que está a fazer e o que ainda quer fazer. É-lhe difícil falar sobre o futuro, mas sabe que quer estar dentro da área do cinema. Este ano entrou no maior festival de 7ª arte do mundo, em Cannes, e este mês voltou ao MOTELx, o Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa. Quando lá esteve no ano passado, descobriu que há conversas de corredor que valem a pena. Esta deu-se antes do MOTELx 2016, nos degraus ao lado da sala que vai dar cor a Descobrindo a Variável Perfeita e veio revelar que o realizador desta curta vai descobrindo a vocação perfeita atrás das câmaras. A começar a trabalhar profissionalmente com os ARTiMANHA, a produtora que criou num concurso de ideias no ensino secundário, Rafael Almeida tem 22 anos e vive em Figueiró dos Vinhos, uma vila do Interior. É a partir daqui que quer chegar ao resto do país. E do mundo.
Os circuitos de competição conhecem duas curtas-metragens tuas – Demência e Que é Feito dos Dias na Cave. Duas histórias de terror, duas histórias com alusão a perturbações mentais. O que é que há de tão fascinante na mente humana para que a queiras explorar?
Eu tenho abordado temas de terror psicológico, sim, mas não sei bem porquê… Talvez porque via muitos filmes de terror na adolescência e sempre fiquei fascinado por esse universo… Talvez por causa disto tenha decidido abordar estes temas, voltar àquilo que vi enquanto jovem e abordá-lo de uma forma diferente. Sobretudo nos Dias na Cave. O Demência é mais experimental, não tem propriamente uma narrativa. Mas nos Dias na Cave tentei abordar o tema dos hospitais psiquiátricos porque essa parte das doenças psicológicas sempre me fascinou.
Então nas tuas curtas, encontramos marcas dos filmes que viste na adolescência?
Sim. Já falei várias vezes sobre isso. [Há marcas do] The Shinning do [Stanley] Kubrick. No Demência há certos movimentos de câmara que são travellings a seguir personagens e, mesmo sem os eixos, que no The Shinning eram muito perfeitinhos, o tipo de plano é muito idêntico ao que o Kubrick fazia. Portanto, sim, há marcas de muitos filmes que vi, mas o The Shinning talvez seja aquele que me tenha marcado mais em termos de realização.
Está a referir-te apenas a questões de realização?
Não, também ao conceito. No Demência temos um jovem que anda a vaguear numa casa, meio perdido. O The Shinning acaba por ser um pouco isso: o Jack Nicholson anda a vaguear num hotel. E essa imagem de alguém a percorrer corredores aparece novamente nos Dias na Cave, com um paciente. Portanto, encontramos muitas ligações com os filmes do Kubrick, mas não só com o The Shinning. Por exemplo, as partes mais delirantes que aparecem no fim do 2001: Odisseia no Espaço também me influenciaram.
Quando o Demência foi selecionado para o prémio de Melhor Curta de Terror Portuguesa do MOTELx [Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa], disseste que acreditavas que essa não seria a última participação da tua equipa nesse festival. E não foi porque, em setembro, o Que é Feito dos Dias na Cave vai estar em competição.
Sim, apesar de nessa altura não estar a trabalhar com a mesma equipa com que estou agora. Foi um projeto mais individual…
Mas acreditavas que tu ias voltar?
Sim, ao MOTELx, sim.
Agora que já conheces a dinâmica do festival, há estratégias que é preciso seguir, nomeadamente para que sejas notado por investidores ou outros realizadores?
Eu acho que uma das coisas que se tem que fazer é ir ao festival. [Risos] Não tem lógica ter um filme lá em exibição e não ir ao festival. Muitas vezes o mais importante nem é sequer ver os filmes, mas sim as conversas que se têm nos corredores. No caso do Cinema São Jorge, as conversas que se têm nos corredores são muito interessantes. E é muitas vezes nesse ambiente que se consegue realmente mostrar o trabalho a outros realizadores e a produtores internacionais. Quando se vai apenas ver um filme, não se fala sobre cinema. Por isso, eu não lhe chamaria estratégia, mas uma das coisas mais importantes nos festivais são mesmo as conversas que se têm nos corredores.
Acreditas que a curta que realizaste pode sair vencedora nesta 10ª edição do MOTELx?
Não querendo dizer o normal que é “Estar em competição já é muito bom”, que é, obviamente, gostávamos de ganhar e penso que a curta tem potencial para ganhar. Pelo conceito, pela forma diferente como a história é contada. É um filme que relata uma história na primeira pessoa, mas ao mesmo tempo vemos a história na terceira pessoa. O espectador também é uma personagem. Por isso, acho que é interessante. Podemos sair vencedores, tal como qualquer um dos outros. [Risos]
A mesma curta este ano fez parte do Short Film Corner de Cannes.
No Short Film Corner, há uma sala com 40 pontos de exibição, onde as pessoas vão entrando e escolhem os filmes que querem ver. Essas pessoas podem ser produtores, investidores e nós temos que tentar publicitar o nosso filme ao máximo, de forma a que essas pessoas o escolham para assistir. É uma forma de divulgarmos o nosso trabalho, de conseguir investidores para os próximos projetos. E obviamente que estar em Cannes é estar inserido naquele mundo particular do cinema e começar a perceber como é que ele funciona. Esse é um dos maiores objetivos de ir a Cannes: perceber como é que esse mundo funciona e que maneiras existem de continuar a fazer cinema… porque às vezes não é fácil. [Risos]
Como foi essa experiência de estar em Cannes, então?
Foi muito boa, obviamente. [Cannes] é o maior festival de cinema do mundo. Sentimo-nos muito pequenos, mas isso acaba por ser interessante. Vemos que aquele universo é enorme. Somos ainda os jovens que foram pela primeira vez ver como é que aquilo funciona, que andaram ali meio perdidos no meio do festival, sem saber o que fazer e para onde ir… a falar com pessoas dos Estados Unidos que já tinham feito duas e três longas-metragens e que se queixavam dos orçamentos. Apercebíamo-nos que os orçamentos delas eram de milhões e ficávamos a pensar como é que era possível. Em Portugal dão-nos uns poucos milhares… É interessante perceber como funciona o mundo do cinema, não num contexto tão caseiro como em Portugal, mas num contexto mais industrial como é agora o Europeu e o sistema americano, que é de loucos.
Agora, entre outras coisas, estás a trabalhar numa curta de comédia. Este género é muitas vezes tido como o primo pobre do cinema. Por essa razão será mais difícil fazer com que esta curta tenha um reconhecimento semelhante às outras duas?
Como até agora só fiz as outras, só sei o reconhecimento que essas tiveram. [Risos] O público do terror e do thriller, dos géneros mais intensos, faz parte de um nicho, mas é um nicho que se interessa muito. É um público que faz muitas perguntas. O nicho da área da comédia é um pouco diferente. [Esta curta] poderá ser uma tentativa de chegar a um outro tipo de público, mas vamos ver como vai ser a adesão. Em Portugal é mais difícil chegar ao público da comédia, a não ser pelas comédias que são mais novelescas, como temos visto com o remake de filmes antigos. Quando se faz uma comédia um pouco diferente desse género, é mais difícil, mas vamos tentar. [Risos]
Entretanto foste o mentor do Shortcutz Figueiró dos Vinhos [competição e mostra quinzenal de curtas-metragens], fazendo desta a primeira vila-Shortcutz do mundo. Como é que surgiu a ideia?
Eu já tinha andado com o Demência e com os Dias na Cave pelos Shortcutz nacionais. Nas cidades, há uma média de 50 espectadores por sessão e pensei que aqui o número de espectadores não iria ser muito diferente. E pensei: “Poderá ser interessante divulgar curtas-metragens portuguesas a que as pessoas não têm acesso…” Existe muito pouco acesso às curtas-metragens em Portugal. Já que sou de Figueiró, achei que talvez fosse interessante fazer isto na minha terra e ver se as pessoas aderiam. E aderiram. Até aderiram bastante bem. Foram cinco sessões. Nas duas últimas houve menos gente, mas é normal porque é verão… Mas nas sessões iniciais esteve muita gente a assistir e espero que as pessoas voltem quando nós também voltarmos em setembro.
Foi difícil avançar com o projeto?
Não é muito difícil porque criar um Shortcutz não envolve muitos custos. Se conseguirmos encontrar apoio para termos um espaço – e nisso o município de Figueiró dos Vinhos ajudou-nos muito – e se tivermos um projetor e uma tela, a partir daqui torna-se fácil.
E os contactos…
Pois, em termos de contactos, já os fui criando anteriormente nos festivais. Já conhecia quase todos os convidados que vieram ao Shortcutz. Pensei que seria difícil trazê-los a uma vila tão pequena, mas não foi. Quase todos aceitaram o convite, portanto foi bom.
Isso prova que não é preciso estar nos grandes centros urbanos para ter acesso à cultura?
Sim, a ideia passa por aí. Não é preciso estarmos nos grandes centros urbanos para as pessoas se interessarem por cultura. Eu acho que em todo o lado as pessoas se podem interessar por cultura, mas muitas vezes é ela que não chega até às pessoas. E as pessoas acabam por não conhecer muita coisa que se lhes fosse dada a conhecer talvez passasse a interessar-lhes… É esse o ponto do Shortcutz. O Shortcutz é uma tentaiva de o fazer, mas deveriam aparecer muitas mais iniciativas como essa para levar a cultura até às pessoas.
Podias estar a trabalhar numa cidade ou até mesmo no estrangeiro. Tiveste propostas para que isso fosse possível, mas estás a trabalhar na vila onde cresceste. O que é que estes espaços têm para dar a quem está a desenvolver-se em termos profissionais?
Eu decidi criar uma produtora própria, os ARTiMANHA, e acho que atualmente, nesta área, não existe uma grande diferença entre ter a sede numa vila ou na cidade. A maior parte da comunicação é feita pela Internet. Desde que se tenha um acesso à Internet, – e em Figueiró há – as vantagens são muito mais do que as desvantagens. O custo de vida é muito menor aqui e a qualidade de vida é maior. Pelo menos para mim. E conseguimos deslocar-nos facilmente a todo o lado… Claro que não vou estar a trabalhar em Figueiró: tenho a sede cá, mas trabalho no país todo. E a Espanha até está mais perto daqui do que do Litoral. [Risos] Portanto, parece-me a decisão acertada. Os apoios ao investimento no Interior estão agora a avançar de uma forma que não se vê no Litoral. E esse é um dos principais fatores pelos quais decidi ficar cá e criar aqui o meu negócio.
Sempre disseste que querias ser engenheiro informático, mas na hora de escolher optaste por estudar cinema na Universidade da Beira Interior (UBI). Porquê a mudança?
Sempre me fascinou a tecnologia. Já em pequeno mexia em computadores e até ao 12º ano fiz biscates de arranjo de computadores. E mesmo agora ainda há pessoal que me pede e eu faço… Mas na verdade só no 12º ano é que descobri que existiam cursos de cinema em Portugal. E não sabia que era possível fazer vida com a área do vídeo, nunca tinha pensado nisso. Depois, quando descobri o curso de Cinema da UBI, pensei “Até gosto de Informática, mas se calhar tem muito mais matemática, mais lógica… é como entrar numa espécie de engrenagem…”. Eu sentia necessidade da parte criativa também. Parece um salto um bocado brusco, mas para mim não foi porque eu gostava bastante de fazer vídeo. E de ver também. A escolha para mim acabou por ser fácil: concorri para Cinema como única opção.
Quanto à engenharia informática, fica um sonho por concretizar?
Se calhar não. Falando com pessoas que tiraram o curso, agora percebo que a ideia que eu tinha daquilo que seria não é a correta. É o que estava a dizer: acaba por ser mais matemático e não envolver tanto a parte da criação. Dá também para enveredar para essa parte, mas quando fui para a UBI acabei por perder um bocado o interesse…
Dentro de dez anos, o que é que já terás feito?
Dez anos… Daqui a dez anos… A curto-prazo, dentro de três anos, até aos 25, gostava de realizar a minha primeira longa-metragem. Ainda não tenho qualquer ideia do género, não sei nada, mas gostava de realizar a primeira longa-metragem. Gostava de realizar uma série televisiva e neste momento já estamos a desenvolver esforços nesse sentido. [Pausa] Mas dez anos é realmente muito tempo… Gostava obviamente de continuar a trabalhar em cinema. Agora, com a minha produtora, estou a trabalhar em publicidade e cobertura de eventos para tirar rendimento do vídeo. Mas obviamente que um dia gostava de poder trabalhar em cinema. E dentro de dez anos gostava de poder trabalhar em cinema a tempo inteiro. Isso é um dos sonhos.