Aires Henriques – O berço do Hino Nacional

O berço do Hino Nacional

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A República Portuguesa comemorou em 2010 o 1º Centenário da sua existência ao som do hino “A Portuguesa”, composto em 1890 por Alfredo Keil na sequência do Ultimatum inglês de 11 de Janeiro desse ano, o qual impunha a Portugal que prescindisse da ocupação dos territórios africanos correspondentes ao “Mapa Cor de Rosa” por este contrariar o projeto expansionista inglês – concebido por Cecil Rhodes – que pretendia unir por caminho de ferro as cidades do Cairo (no Eqipto) e do Cabo (na África do Sul).

A indignação nacional foi imediata, sustentada pela imprensa da época e pelos mais ilustres intelectuais e artistas de então. A título de exemplo, Rafael Bordalo Pinheiro não se contentou em modelar uma caixa de joias sob a forma de um coração ferido pela potente garra inglesa. Produziu ainda duas outras imaginativas e artísticas peças: um escarrador e um penico com as feições de John Bull (o equivalente ao nosso Zé Povinho), onde os portugueses pudessem descarregar a sua imensa revolta e raiva pelo ultraje inglês.

Por sua vez, apesar de ascendência alemã, e de ter estudado em algumas das melhores escolas estrangeiras, Alfredo Keil – perante tamanha afronta – sentindo-se português e patriota descarregou todo o seu mal-estar e irritação sobre o piano, na forma de uma marcha em que vibrava toda a sua raiva contra os ingleses, e a que veio a chamar-se “A Portuguesa”.

Mas, para além de Alfredo Keil, “A Portuguesa” contou ainda com o poeta Henrique Lopes Mendonça[2] que “a posteriori” adaptou os versos à marcha, transformando o hino num verdadeiro canto patriótico “que se tornou imediatamente tão popular que por toda a parte era tocado e cantado”.

As primeiras edições foram publicadas a expensas dos próprios autores, que mandaram tirar 12.000 exemplares que se esgotaram em pouco tempo, tal era o sentimento patriótico que irradiava por todo o país.

Paralelamente começava a grassar em alguns sectores da sociedade portuguesa um sentimento antimonárquico acalentado por fervorosos republicanos e pela burguesia insatisfeita. Indícios do referido estado de espírito encontramo-los designadamente na postura pública e promocional da fábrica de bolachas e biscoitos Eduardo Conceição e Silva & Filhos[3], propriedade dos pedroguenses Eduardo e seu irmão Francisco Conceição e Silva[4], assim como da “Fábrica Popular”, de José Manuel da Silva.

Segundo Sebastião de Magalhães Lima, “’A Portuguesa’ executou-se pela primeira vez no ‘Teatro da Alegria’ (em Lisboa), num a-propósito intitulado ‘Torpeza’, de António Campos Júnior, em Janeiro de 1891, provocando um verdadeiro delírio”, o que posteriormente acabou por acontecer por todo o país.

E foi ao som de “A Portuguesa”, imediatamente adotada por quantos aspiravam o fim do regime monárquico, que em 31 de Janeiro de 1891 se proclamou no Porto – de modo ainda que efémero – a República[5].

Por isso, após a repressão que se lhe seguiu – mas sem que o ideal republicano e as exigências de representação de A Portuguesa alguma vez esmorecessem – chegou a propalar-se que a “A Portuguesa” fora “proibida de se cantar em público”. Na verdade, apenas a resistência de fações contrárias a algum extremismo patriótico – que levara à irritação do “público oficial dos teatros” – forçara a maior contenção nas exibições, o que temporariamente confinara a marcha aos meios mais radicais “onde vigorava o republicanismo e a irreverência”[6].

Segundo o estudioso Rui Ramos, de facto “A Portuguesa nunca foi proibida e a sua execução foi até, em certos momentos, mais livre do que a do ‘Hino da Carta’”[7]. Mas de hino de cariz patriótico e apartidário passou cada vez mais a ser anti-monárquico e vincadamente republicano, até que em 1910, quando da proclamação da República, se ouviu com redobrado fervor na Revolução de 5 de Outubro, e “em 1911 foi adotado pela Assembleia Nacional Constituinte como o hino nacional português”[8].

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Percebe-se que, ao longo dos tempos, Pedrógão Pequeno reivindicasse para si a qualidade de berço de “A Portuguesa”. Tamanha honra, no entanto, não lhe cabe. Objetivamente ela tem que ser repartida entre Lisboa, onde Keil compôs a música, a Estalagem dos Vales (em Águas Belas) e a igreja de Águas Belas ou a Casa do Castelo (em Paio Mendes), onde a terá orquestrado, e – por fim – o lugar do Carril, sede da então Filarmónica Carrilense, na freguesia de Dornes, onde a terá ensaiado e conduzido. Todas estas localidades ficam no concelho de Ferreira do Zêzere, onde Alfredo Keil passou férias no Outono de 1890.

De facto, segundo o seu bisneto Arqtº Keil do Amaral, Alfredo Keil frequentava habitualmente uma estalagem em Vales (na freguesia de Águas Belas)[9] e terá sido aí que compôs uma adaptação das partituras, para que a marcha, a pedido dos músicos locais, pudesse ser tocada – em termos experimentais – por uma banda filarmónica: a Sociedade Filarmónica Carrilense[10].

Por se saber que Alfredo Keil percorreu todo o Vale do Zêzere a compor música, a pintar e a desenhar, como bem o ilustra o seu livro póstumo “Tojos e Rosmaninhos”, não será difícil crer que as suas passagens por Pedrógão Pequeno o possam ter igualmente inspirado nas suas composições musicais, sendo certo que do Cabril tirou inspiração para os cenários e músicas de algumas das suas óperas mais famosas, designadamente “A Serrana”.

9ALFREDO_KEIL_3_copyAté prova em contrário, terá sido a Filarmónica Carrilense, hoje representada pela Associação Filarmónica Frazoeirense, de Ferreira do Zêzere, – uma das mais antigas do país[11] – a primeira a executar em público a referida “A Portuguesa”, o que aconteceu na sua sede social que – àquela data – funcionava provisoriamente no antigo solar do Monteiro-mor, no lugar do Carril, da freguesia de Dornes[12].

Ao mesmo tempo que herdeira desse privilégio, a atual banda Filarmónica Frazoeirense, teve ainda a honra de colher, das mãos do referido bisneto de Alfredo Keil, a oferta de uma cópia da partitura original de “A Portuguesa”, o que mais reforça a nossa convicção quanto às mais autênticas origens desse berço.

Do que não restam dúvidas é que “A Portuguesa”, a par da bandeira verde e rubra, é um dos verdadeiros símbolos da nossa identidade nacional e, por tão bem os serranos terem acolhido o inspirado autor do hino nacional, também Pedrógão Pequeno, o Cabril e o Vale do Zêzere estão necessariamente de parabéns. E, reconhecidos, em 10 de Abril de 1899, como anfitriões que se prezam, receberam-no (juntamente com o ator Taborda) no Cabril [13] ao som do seu hino pessoal[14]… O que provavelmente se repetiu até 1906, ano que antecede o da sua morte[15].

 

[2] Cunhado de Rafael Bordalo Pinheiro.

[3] Sedeada em Lisboa, na zona de Santo Amaro / Alcântara.

[4] Grande amigo de Francisco de Almeida Grandella, o dono dos célebres Grandes Armazéns Grandella. Vide Grandela e a Foz do Arelho, de Vasco Trancoso, edição da associação PH-Património Histórico, Grupo de Estudos, 2ª ed., 2009, a págs. 16; e ainda o Prefácio de Anabela Natário ao livro Memórias e Receitas Culinárias dos Mak avenk os, de Francisco de Almeida Grandella, Colares Editora, 2010, Sintra, a págs. 9.

[5] Vide O cidadão Keil, de Rui Ramos, edição D. Quixote, 2010, a págs. 77.

[6] Vide O cidadão Keil, de Rui Ramos, ed. D. Quixote, 2010, a págs. 83/85

[7] O hino oficial português em vigor em período monárquico. Vide O cidadão Keil, de Rui Ramos, ed. D. Quixote, 2010, a págs. 83.

[8] Vide Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial Enciclopédia, Lisboa/Rio de Janeiro.

[9] Recentemente demolida.

[10] Mais tarde a Sociedade Filarmónica Carrilense, fundada entre 1840 e 1841 e com estatutos desde 1909, teria continuidade na Associação Filarmónica Frazoeirense, sedeada no vizinho lugar da Frazoeira.

[11] Faz parte da Associação Recreativa Filarmónica Frazoeirense fundada em 8 de Setembro de 1841.

[12] Historial das Filarmónicas de Figueiró dos Vinhos, por Carlos Medeiros, 1ª edição, CM Figueiró dos Vinhos, 2007, a págs. 73.

[13] Essa receção teve lugar em 10 de Abril de 1899, aquando da visita ao concelho da Sertã do ator Taborda e do maestro Alfredo Keil. Na ocasião foi-lhes oferecido em Pedrógão Pequeno, no Monte da Sª da Confiança, um pic-nic onde estiveram presentes mais de 200 pessoas e se presume que tenha atuado a Filarmónica Aurora Pedroguense, tocando o hino de “A Portuguesa”.

[14] Vide O cidadão Keil, de Rui Ramos, ed. D. Quixote, 2010, a págs. 84.

[15] Alfredo Keil, nascido em Lisboa a 3 Julho 1850, faleceu em Hamburgo a 4 Outubro 1907.

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